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Preconceito, isolamento e depressão: solidão LGBT precisa ser discutida

"Preciso dizer que te amo" é uma campanha de sensibilização contra o suicídio de homens trans - Reprodução/Instagram @projetoprecisodizerqueteamo
"Preciso dizer que te amo" é uma campanha de sensibilização contra o suicídio de homens trans Imagem: Reprodução/Instagram @projetoprecisodizerqueteamo

Gabriela Ingrid

Do VivaBem

18/07/2018 04h00

Não vou negar que me senti constrangida quando liguei para Ariel Nobre, autor do projeto "Preciso Dizer que Te Amo", uma campanha de sensibilização contra o suicídio de homens trans. Quem fez a primeira pergunta foi ele: "Você é LGBT?". Não, eu disse, já me sentindo mal por, sendo cis e hétero, escrever uma matéria sobre a solidão de quem não está nos padrões de gênero e orientação sexual de uma sociedade heteronormativa. Ariel diz que seu papel é justamente esse: constranger, deixar claro que ele existe, mas que o mundo quer apagá-lo, dizer que o que ele representa é pecado, que não tem espaço no mercado para ele.

Ele tem razão. O mundo dita suas próprias regras, rouba seu lugar de fala e diz onde ele deve ou não deve trabalhar. O preconceito vai além das ruas e entra em casa e no ambiente de trabalho. "Nossas histórias são sempre contadas sob um viés triste, porque a sociedade impõe que nossas vidas sejam assim. Todo mundo que é LGBT passa por isso e se dá conta de que não deveria existir, segundo a sociedade. Essa sensação é muito solitária", diz Ariel. Daí vem o ato de constranger e de dizer a verdade no pouco espaço que tem. "Eu combato minha solidão com o ativismo."

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Vivendo em um país que mais mata LGBTs no mundo, não é difícil entender Ariel. Segundo um levantamento do GGB (Grupo Gay da Bahia), em 2017, foram 445 mortes de pessoas LGBTs. Um crescimento de 30% em relação a 2016. De acordo com Pedro Gastalho de Bicalho, psicólogo do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a "LGBTfobia" produz o sentimento de solidão devido à condição de orientação sexual e identidade de gênero de cada um.

"Além de ser entendida como uma escolha problemática, ainda há aqueles que acreditam que se trata de uma doença, a ponto de a própria justiça brasileira entrar com processos judiciais contra a resolução do Conselho Federal de Psicologia", diz Bicalho, referente à autorização que o juiz da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, Waldemar Claudio de Carvalho, deu a psicólogos, para que eles possam oferecer terapias de reversão sexual —popularmente conhecidas como "cura gay" — a pacientes que não aceitem a própria orientação sexual e que procurem os consultórios "voluntariamente". Bicalho diz que isso faz com que as pessoas se sintam culpadas pela orientação e se afastem de suas relações sociais, em especial com a família.

Experimentar um preconceito reflete em culpabilização, o que faz com que as pessoas se afastem dos seus vínculos sociais" Pedro Gastalho de Bicalho, psicólogo da UFRJ

Alessandra Diehl, psiquiatra, educadora sexual e vice-presidente da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), explica o isolamento por medo do ódio: "Numa sociedade como a nossa, a mais LGBTfóbica do mundo, onde 21% das pessoas dizem que tem ódio, antipatia de conviver com gays, e 40% dos assassinatos transfóbicos do mundo ocorrem aqui, é óbvio que a comunidade LGBT tende a se excluir, a se isolar."

Solidão e depressão

A probabilidade de um jovem homossexual se suicidar é cinco vezes maior do que a de um heterossexual, segundo uma investigação realizada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Mas não pense que a elevada taxa de doenças mentais no grupo LGBT tem relação com a sexualidade. De acordo com o estudo, na verdade, o problema é a falta de apoio da família e dos amigos.

"As pessoas não são solitárias por conta da orientação, e sim devido a maneira como são historicamente tratadas pela sociedade. Até mesmo para se proteger da violência, elas se afastam e viram guetos", explica Bicalho.

Começa com uma "simples" exclusão, levada ao isolamento e à solidão. Apesar de parecer inofensiva, a solidão e o isolamento social têm potenciais efeitos danosos à saúde. Afastar-se dos ciclos sociais pode elevar o nível dos hormônios do estresse e inflamações, os quais, por sua vez, podem aumentar o risco de doença cardíaca, artrite, diabetes do tipo dois, demência e até de tentativas de suicídio.

Além da saída do armário

Ao contrário do que muitos pensam, o processo de isolamento não existe apenas durante a "saída do armário". A solidão acomete o grupo LGBT antes, durante e depois da pessoa assumir quem realmente é. "Não é um portal que você passa e está tudo bem. É uma guerra interior constante. Desde que me assumi homem trans, minha vida virou uma sabatina, as pessoas têm dúvidas e me questionam constantemente", diz Ariel.

Segundo Boris Dittrich, advogado e ativista social, criador da lei que permite o casamento homoafetivo —implementada na Holanda, em 1994, e reproduzida por mais de 20 países —, o processo de descobrir que sua orientação sexual ou sua identidade de gênero podem ser diferentes das pessoas que criaram você —pais, avós, irmãos e irmãs — é muito solitário. Mesmo quando você decide não falar.

"Você tem que descobrir se é seguro sair do armário, e algumas vezes a situação não é boa ou clara. Então, é melhor ficar escondido. Mas, nesse caso, você precisa fingir ser outra pessoa e esse é um sentimento muito solitário, que tem várias consequências negativas em termos de saúde, já que você pode desenvolver todo tipo de doença mental, como a depressão", diz o advogado holandês.

É difícil estar nos espaços sociais, lidar com gente que erra seu gênero, ninguém quer te contratar... Você fica muito sensível e se isola. Não somos vistos como pessoas bonitas, é sempre uma vergonha" Ariel Nobre, autor do "Eu Preciso Dizer que Te Amo"

Para quem resolve se assumir, a luta é constante, com a sociedade e com si mesmo. "Com trans é mais complicado ainda, porque você sai do armário duas vezes. E, quando você faz isso, as pessoas sempre tentam te empurrar de volta", diz Ariel.

Yago Neres, também identificado como homem trans, conta que demorou anos para entender que ele não era um "erro". Desde os 12 anos ele já sofria na escola por causa do racismo. Era comum ficar sozinho no intervalo entre as aulas ou nas atividades em grupo. Aos 13, quando assumiu que era lésbica —na época se identificava como mulher —, sentiu que seu círculo de amizade havia sumido. "Minhas amigas evitavam falar comigo e os meninos faziam chacota com a minha cara ou até mesmo me agrediam."

Yago - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Yago Neres, 21 anos
Imagem: Arquivo Pessoal
Por causa dessa rejeição, Yago se afastou dos poucos colegas que ainda falavam com ele. "Foi uma época muito difícil, pois a única coisa que me consolava era os animes e os poucos filmes LGBTs que encontrava no Youtube. Comecei a sentir a solidão aumentar o meu desejo de morte, pois onde quer que eu fosse sentia um vazio e a rejeição. Os olhares jogavam um peso em minhas costas, andava sempre de cabeça baixa", diz.

Devido ao sentimento de exclusão, ele começou a se mutilar. "Cortava os pulsos com tesouras ou cortava a orelha com alicates para sentir a dor e me esquecer do vazio que havia em mim. Foram quatro anos nessa agonia, nesse cansaço mental. Mesmo que eu encontrasse pessoas novas, logo me afastava delas por medo de sofrer com o preconceito e ouvir as palavras de desprezo."

O problema piorou quando ele contou a todos que não se identificava com o gênero feminino. Dessa vez, a rejeição veio da família. Yago sentia que a cada passo que dava para tentar descobrir quem era, ficava mais distante dos familiares. "Foram dias solitários", lembra ele. "Não saia mais do quarto, não saia mais na rua, não sentia vontade nenhuma de ver pessoas."

Mas em 2016 Yago conheceu os ativistas Ariel Nobre e Gustavo Bonfiglioli em uma palestra, e pode perceber que existiam pessoas como ele. "Percebi ali que eu não era o 'erro'. Aos poucos, fui conhecendo pessoas LGBTs e participando de debates, assim pude compreender e aprender a me amar, a olhar para dentro do meu 'eu' e usar todos os insultos que ouvi e vivi como combustível para ter forças e bater de frente com pessoas homofóbicas e transfóbicas."

Hoje, Yago acredita que a força para combater a solidão que sofreu foi justamente falar sobre ela, compartilhando com os outros o que sente e, o mais importante, saber ouvir o outro também.

Ser gay na terceira idade

A solidão na velhice já é uma questão por si só. A partir da década de 2050, a população brasileira acima dos 60 anos será o dobro do contingente de crianças e adolescentes com menos de 14 anos, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No entanto, apesar de o país estar envelhecendo, os idosos estão cada vez mais solitários. Segundo um levantamento de 2017 da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, a solidão é o maior temor dos brasileiros na terceira idade.

Mas o processo de solidão e envelhecimento LGBT é diferente. Primeiro porque a população de travestis e transexuais não envelhece, já que é assassinada antes. "Essa população é assassinada antes mesmo de se sentir sozinha", diz Bicalho. Segundo porque o isolamento LGBT, além de ser um debate ao longo da vida, se fortalece ainda mais na terceira idade.

"Já conversei com LGBTs com 75 anos ou mais algumas vezes e descobri que, quando o parceiro morre, eles voltam para o armário na hora de procurar um cuidador, porque muitas vezes os enfermeiros são preconceituosos e não aceitam. Então, eles retornam à fase de solidão", explica Boris Dittrich.

Geralmente, para se proteger, o LGBT cria redes sociais subjetivas diferentes da família, de acordo com Alessandra Diehl. Quando essas pessoas vão falecendo, o preconceito estará na casa de repouso também. "Os idosos se sentem tolhidos nesses lugares e têm que voltar para o armário. A trajetória começa cedo com exclusão, sofrimento, abuso verbal, sexual, hostilidade e se repete décadas mais tarde."

3.jun.2018 - Vista aérea do desfile da 22ª Parada LGBT realizada na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, neste domingo (3). O tema do evento esse ano está focado nas eleições de 2018 - Werther Santana/Estadão Conteúdo - Werther Santana/Estadão Conteúdo
Vista aérea do desfile da 22ª Parada LGBT realizada na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, em junho
Imagem: Werther Santana/Estadão Conteúdo

Preciso dizer que te amo

Quando Ariel Nobre se viu na situação de isolamento, ele tentou se matar e resolveu escrever suas últimas palavras: "Preciso dizer que te amo". Os dizeres o fizeram repensar e, desde de setembro de 2015, ele decidiu escrever por onde passa, em objetos e corpos, para sensibilizar as pessoas a respeito do suicídio de homens trans.

"A cura para a solidão tem que ser como a dor, igual a vacina, que vem da cobra que te picou. E também uma certa resiliência, entender que vou ter que explicar o que é homem trans até eu morrer. É uma face cruel, mas preciso aprender a viver melhor com essa realidade. Quem me ensinou isso foi a cultura LGBT, que me ensina toda hora a me apropriar daquilo com que querem me matar", diz ele.

De acordo com Dittrich, com todos esses números no Brasil, é normal se sentir inseguro, é um risco estar na rua e mostrar quem você realmente é. O fato de que o ambiente não é acolhedor leva ao isolamento. "Nós torcemos para que haja políticas que cuidem dessa questão e que digam que estão aqui para proteger minorias e que suportem essas pessoas."

A sociedade civil é organizada. Afinal, temos a maior parada gay do mundo. Mas no Brasil há um discurso de ódio em nome do conservadorismo, do fundamentalismo. Isso impede o diálogo e nos faz uma sociedade assassina" Alessandra Diehl, psiquiatra da Abead

Em São Paulo existem vários centros de apoio, mas não no Brasil todo. "Em Rondônia não tem rede de assistência, por exemplo, que dirá uma pessoa que acolha ou entenda. Não temos que ter serviços dedicados somente a LGBTs, mas serviços capazes de inclui-los", diz Diehl. E não adianta haver os centros sem cuidar da causa: a LGBTfobia. Para isso, todos os especialistas consultados para esta matéria concordam: educação sexual nas escolas é a chave.

Segundo a psquiatra, para quem luta, empoderamento é o principal, lembrar que você pode falar e que pode ser livre, porque é um cidadão. "Eu me aproprio desse lugar marginal que eu estou e volto para o centro para lembrar as pessoas que estão no poder, eu volto com a margem comigo, lembrando que eu quem deveria ter poder de fala. Meu ativismo me tira da solidão, me rebela contra essa estrutura", diz Ariel.

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