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Fred Di Giacomo

A falácia do "tudo que é bom (incluindo livros) é coisa de rico (de boy)"

Livro não é "coisa de playboy" - Montagem/Cidade de Deus
Livro não é "coisa de playboy" Imagem: Montagem/Cidade de Deus

27/08/2020 04h04

"Tênis novo? Tá boy, hein?"
"Fazendo terapia? Ixe, virou rico..."
"Vegetariano?! Ah, para, isso aí é frescura de burguês safado!"

Todas essas frases voltaram à minha memória quando li a notícia sobre a PEC 45. Não sabe do que se trata? É a reforma tributária proposta pelo Ministro da Economia Paulo Guedes e cujo mentor é o tributarista Bernard Appy, aquele que disse que, no Brasil, "quem consome livros são pessoas de alta renda". Essa ideia defendida pela equipe de Guedes, de que livros são "coisa de rico" e devem ficar ainda mais caros, ao receber um imposto de 12% (enquanto "coisas de pobre" como grandes fortunas, jet skis, jatinhos e helicópteros não são especialmente tributados), me lembrou um mantra ouvido eternamente em minha infância e adolescência: basicamente tudo que era bom era "coisa de playboy".

Livro é coisa de playboy? Alexandre Ribeiro na Favela da Torre - Lucas Sampaio - Lucas Sampaio
Livro é coisa de playboy? Alexandre Ribeiro na Favela da Torre
Imagem: Lucas Sampaio

Quanto pior melhor

A molecada do meu bairro, a molecada do hip hop, a molecada da cenas punk, a molecada da escola estadual onde fiz meus primeiros estudos não perdoava: qualquer coisa que fugisse do padrão destinado para a classe média baixa, para os trabalhadores ou para os "pobre locos" era imperdoavelmente "coisa de boy". Havia, nas periferias (especialmente nos tempos pré-Plano Real, pré-Bolsa Família, pré-estabilidade econômica) uma cultura oposta à cultura ostentação que o funk inventaria nos anos 2000. Era uma ideia de que qualquer coisa que fosse "boa" era coisa da elite, de gente metida.

MC Marcelly e outros artistas do funk ostentação mudaram a mentalidade de uma geração

Em que pese uma crítica inteligente ao consumismo que faz o sonho da juventude periférica ser um par de tênis de R$ 1000, havia ali uma lógica perversa que agradava a quem queria que nada mudasse no país da Casa Grande e da Senzala. Estávamos há 500 anos do mesmo jeito: brancos e ricos de um lado, pobres negros de outro. Para que mudar? Se acreditássemos que livros, por exemplo, eram coisa de burguês, de esquerda caviar, nunca tomaríamos consciência de que havia gente pensando a desigualdade social que assolava o Brasil, a violência racista que vitimava as periferias, as opressões de gênero e de orientação sexual, por exemplo. Se acreditássemos que os livros, eram coisa "de boy" nossos horizontes se encolheriam, nossos sonhos seriam mais rasteiros, nossas asas menos frondosas.

Livros são portais que nos permitem viajar no tempo, no espaço e na mente de pessoas que nasceram completamente diferentes de nós. Meu amigo-escritor Alexandre Ribeiro, 22, havia viajado pelo espaço, embarcado no foguete literário chamado "Guia do Mochileiro das Galáxias", muito antes de sair de Diadema, onde se criou na Favela da Torre. Eu conheci o Alexandre (autor do romance "Reservado") na Énois, em 2016, onde dei aulas de jornalismo para jovens das favelas e periferias de São Paulo.

Quando cheguei na Énois, me senti de volta ao meu velho bairro. Seria interessante que o ex-banqueiro Paulo Guedes (que, segundo reportagem da revista Piauí, chegou a administrar três bilhões de reais no fundo da Bozano e teria ganhado 150 milhões de dólares só na venda do banco Pactual) colocasse os pés na rua antes de cravar que livro é coisa de rico ou que ele "vai doar livros para pobres".

Amigo banqueiro Paulo Guedes, quem vai escolher os livros que os "pobres" vão ler? Você? O Bolsonaro? Na Énois, assim como no meu velho bairro, encontrei jovens que liam coisas que eu nunca tinha lido, que discutiam ideias complexas e que me fizeram ótimas recomendações. O, hoje jornalista, Yuri Ferreira gostava de discutir filosofia e teatro, enquanto a, hoje publicitária, Isis Naomí me explicava pacientemente o que era ser não-binárie e me atualizava sobre a cena libertária do ABC paulista. Li "Capão Pecado", do Ferréz, depois que o André Luiz, que toca hoje a TV Doc Capão, disse que era dos poucos livros que gostava e devorei Carolina Maria de Jesus porque uma jovem do Grajaú, que se transformaria na grande cantora Nayra Lays, estava fazendo uma apresentação inspirada na escritora. Isso sem contar as horas e horas que passei conversando sobre Manoel de Barros, Douglas Adams e Hans Zimmer com o já citado escritor Alexandre Ribeiro. Todos eles jovens periféricos, grande parte deles negros, assim como meu antigo vizinho e amigo Gilvan Eleutério - que foi operador de paleteira, segurança de boate, professor de muay thai - e lia Nietzsche, Lenin e os poetas românticos brasileiros aos 13 anos de idade.

Não lembro de nenhum pré-adolescente do colégio particular, onde fui bolsista parte da minha vida, lendo Nietzsche. Em um país que tem Bolsonaro como presidente e Olavo de Carvalho como guru é difícil dizer que a elite leia muito. Nossa média de leitura é de apenas 2,4 livros por ano (o que inclui a Bíblia Sagrada, que a galera é obrigada a ler no culto). Pensa comigo, se o 1% da população mais rica do país (2 milhões de pessoas) realmente amasse os livros, não teríamos tiragens tão pequenas dos nossos autores, certo? Um escritor de ficção de editora grande vende, em média, 3 mil livros, nem perto de 2 milhões.

Do outro lado da ponte, no entanto, existe muita gente contando moedas para comprar o livro da sua autora ou do seu autor favorito, existem muitos saraus acontecendo, muitos eventos de slam-poetry, cursos de escrita criativa, crowdfundings para bancar antologias de autoras e uma miríade de pequenas editoras, exércitos de um homem só, que lançam livros importantíssimos como a Malê, a Mondrongo, a Caos & Letras, a Macabéa, a Patuá, a Penalux, a Moinhos, a Nós, a Dublinense e a Reformatório (que inclusive está precisando do seu dinheiro para seguir publicando).

Na Énois, além encontrar bons leitores, que só reforçam a ideia de como as periferias do Brasil são plurais e não um clichê ambulante, me deparei, mais uma vez, com a competição que Alexandre Ribeiro chamava de "quem é o grande rei da merd@". Mesmo questões sérias de saúde mental, como a depressão, eram vistas, a princípio, como frescura. Uma pessoa próxima, criada numa favela de São Paulo, chegou a dizer que "quem é pobre não tem tempo pra ficar deprimido". Só que as estatísticas mostram que a depressão e os transtornos mentais castigam duramente os mais pobres, assim como começam a aparecer recortes raciais que destacam um grande número de suicídios entre os jovens indígenas brasileiros ou um número maior de doenças mentais associadas ao racismo sofrido por afro-americanos. Esses dados estão em uma reportagem que fizemos para a BBC e foi publicada aqui no UOL. Um ano depois dessas aprendizagens todas, os alunos e alunas da Énois foram finalistas do Prêmio Jabuti 2017, o mais importante da literatura brasileira, graças ao nosso livro "Prato Firmeza: o guia gastronômico das quebradas de SP", publicado de forma independente.

Será que é isso que incomoda Guedes e seus asseclas? Ver a periferia não só lendo livros, mas, também, escrevendo, publicando e sendo premiada?

A quem interessa que o trabalhador brasileiro, as pessoas negras, os indígenas, a maioria do Brasil que é composta pela classe média, os trabalhadores e pobres não tenham acesso a saúde, boa alimentação, autocuidado, informações, relacionamentos saudáveis e momentos, merecidos, de lazer? A quem interessa seguir convencendo a maioria de que o que é bom é para poucos?

Nayra Lays no espetáculo "Carolinas, soltem suas vozes" - Reprodução/Youtube - Reprodução/Youtube
Nayra Lays no espetáculo ?Carolinas, soltem suas vozes?
Imagem: Reprodução/Youtube

No ano passado, pela primeira vez na história do Brasil, o número de alunos negros nas universidades públicas foi maior que o de alunos brancos. Em 2018, o grande vencedor do Prêmio Jabuti foi Maílson Furtado, um autor cearense periférico, que publicou seu romance de forma independente. Em 2019 quem ganhou o Prêmio Rio de Literatura foi o escritor periférico Geovani Martins, quem venceu o prêmio APCA foi a escritora negra e sertaneja Jarid Arraes e quem venceu o Prêmio São Paulo de Literatura foi a escritora negra Ana Paula Maia. Este ano, autores e editores protestaram contra a escolha da FLIP (maior feira literária do Brasil) de homenagear uma autora americana branca que apoiou a ditadura brasileira. Sugeriram que se homenageasse uma autora negra brasileira, como Conceição Evaristo ou Carolina Maria de Jesus. A curadora da FLIP pediu demissão e disse que a feira deveria ser organizada por uma mulher negra. O curador do Prêmio Jabuti também caiu por fazer declarações preconceituosas. A quem será que essas mudanças incomodam tanto? Por que esse governo ataca tanto os livros, o cinema, a cultura, as cotas? Por que gasta tanta energia a atacar indígenas e quilombolas?

Antonio Candido, um dos maiores intelectuais que nasceu nessas terras, defendia a literatura como direito humano, assim como são direitos humanos o acesso a comida, água, saúde, educação e segurança. Nada disso é frescura, nada disso é coisa de playboy, nada disso é só para os ricos. É tudo seu, leitora. É tudo seu, leitor. E é a consciência disso que deixa a Casa Grande em choque.

"Eles querem que alguém
Que vem de onde nóiz vem
Seja mais humilde, baixa a cabeça
Nunca revide, finge que esqueceu a coisa toda", Emicida