Topo

Fred Di Giacomo

Bullying, gordofobia e automutilação: corpo carneado de Maya Falks resiste

O bullying na escola marcou a personalidade de Maya - Arquivo pessoal
O bullying na escola marcou a personalidade de Maya Imagem: Arquivo pessoal

20/08/2020 04h00

"Perninhas cruzadas, cabeça baixa", repete a voz jamais ouvida. "Perninhas cruzadas", repete-se o começo da oração por 52 vezes. "Perninhas cruzadas, cabeça baixa, voz baixa", repete, repete e repete quem nunca foi antes vista ou ouvida na arte brasileira, impregnando o mantra opressivo em nossas retinas horrorizadas.

"Minha adolescência foi um inferno. Acho que essa frase a traduz. Porque eu sempre fui a menina gorda, super sensível. Eu não sabia na época, não tinha diagnóstico, mas eu sou bipolar e sou assexual. Então, todo aquele momento de construção de identidade, de querer, [aquele momento em] que os jovens se unem, que os hormônios começam a borbulhar era uma coisa que para mim não fazia sentido, não se encaixava. O ser gorda também reverberou muito na minha formação de personalidade porque eu fui muito excluída, muito humilhada, apanhei. Fui vítima de vários tipos de violência." A voz bonita, de locutora, as risadas frequentes, mesmo quando contando terrores profundos, compõem a complexa personalidade da guria que nasceu no dia mais frio de 1982, na fria Caxias do Sul, batizada Márcia Bastian Falken e que se tornaria a escritora Maya Falks.

Santuário

O último lançamento de Maya é o romance "Santuário" - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
O último lançamento de Maya é o romance "Santuário"
Imagem: Acervo Pessoal

As memórias mais distantes de Maya são rolar pelo berço, ainda bebê, agarrada não em uma naninha ou um pelúcio-amigo, mas no livro "Batalhão das Palavras", do poeta Mário Quintana, a lhe fecundar a mente com causos possíveis. Aos três anos, a guriazinha já desenhava histórias em quadrinho - com começo, meio e fim - e pedia para Lilia, a mãe, completar com os textos que saíam de sua cabeça inventiva. "Minha mãe é um anjo, ela me acompanha em tudo. Vai em entrevistas comigo, vai nos lançamentos, participa das lives. É uma parceirona."

Seus brinquedos favoritos eram os livros e as fitas cassete com contos de fada que ouvia e nas quais se inspirava para contar histórias próprias às suas bonecas. "Do meu nascimento aos meus 15 anos, morei num bairro bastante afastado do centro, com bastante natureza.Era uma rua sem saída e, nos fundos dessa rua, tinha mato, tinha as araucárias, tinha cascata que congelava no inverno." Esse cenário, onde costumava brincar nos finais de semana, difere das ruas mais centrais da sua Caxias natal, cidade habitada por mais de meio milhão de pessoas, a segunda mais populosa do Rio Grande do Sul. Hoje conhecida por abrigar milhares de descendentes de italianos da região do Vêneto, Caxias foi, até o século XIX, lar do povo kaingang, massacrado violentamente pelos chamados "bugreiros".

Talvez seja o bairro tranquilo, onde Maya passou a infância e adolescência, a fonte de inspiração para seu último livro "Santuário" (Ed. Macabéa, 2020), romance-mosaico composto por pequenas histórias que formam um retrato falado desta cidade imaginária do interior gaúcho. É "um livro escrito por alguém que ama profundamente a literatura e que acredita nela como força capaz de ressignificar o mundo" escreve, em sua orelha, a professora da Universidade de Brasília Regina Dalcatsgnè, autora do fundamental "Literatura brasileira contemporânea: um território contestado"(Ed. Horizonte, 2018).

"Santuário" lembra uma boa telenovela sobre cidades do interior, só que troca o típico cenário nordestino das produções Globais pelo Vale dos Sinos. Suas histórias correm rápido por estilos e tramas variadas, ressaltando as múltiplas leituras cultivadas pela gaúcha. O santuário pessoal de Maya são seus livros. A chama da vida nela queima alimentada por narrativas. "O que torna uma pessoa uma boa escritora é ela ser uma boa observadora e uma boa relatadora de fatos. Saber narrar uma história. E o mundo é cheio de histórias". É impossível não sentir a paixão transbordar por seus poros, quando Maya, que também é jornalista e publicitária, fala dos livros que lê e resenha em seu site Bibliofilia Cotidiana, dedicado principalmente à literatura contemporânea nacional, que a autora considera "de altíssima qualidade."

Histórias de minha morte

Maya se interessava por teatro e pela música na infância - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maya se interessava por teatro e pela música na infância
Imagem: Arquivo pessoal

"Perninhas cruzadas, cabeça baixa, voz baixa". A voz que se repete em "Histórias de minha morte" (Editora Belas-Letras, 2017 ) não larga a cabeça do leitor. O mantra repressivo foi ensinado violentamente à sua protagonista Leandra, uma jovem negra, por uma babá, quando ela ainda era criança.

A jornada infernalmente realista de Leandra vai do purgatório ao inferno, quando a menina entra no colégio. Por que nossas escolas parecem-se tanto com cadeias? O que temos ensinado às nossas crianças? "Ninguém nasce bipolar, se torna. A minha adolescência, o bullying que eu sofri, a exclusão, tudo isso contribuiu para o agravamento do meu quadro.", diz Maya.

Leandra, a protagonista de "Histórias de Minha Morte", é uma prima espiritual de Brás Cubas, narrador-defunto mais famoso do planeta. Só que a inspiração para criar sua história não brotou de Machado de Assis, mas do poeta romântico Gonçalves Dias (descendente de indígenas e africanos), grande ídolo de Maya. " Gonçalves Dias viajou para Portugal numa situação em que estava muito doente e as pessoas achavam que ele ia morrer na viagem. Só que o navio onde ele viajava entrou em quarentena. Isso acontecia quando alguém à bordo tinha uma doença contagiosa ou morria. Essa notícia da quarentena chegou ao Brasil, causou uma comoção geral, começaram a divulgar a morte de Dias. Seu sogro falou muito mal dele, mas o escritor não tinha morrido. Então, Gonçalves Dias enviou uma carta a um amigo dizendo que deveria escrever um livro contando como seria a vida depois da morte".

A princípio o leitor de "Histórias de Minha Morte" não sabe se estamos diante de um "espírito desencarnado" ou de uma suicida que alucina diante de uma overdose de remédios. Aos poucos, a narrativa caminha para uma versão kardecista da Divina Comédia (livro citado inúmeras vezes pela protagonista), onde Leandra repassa sua trágica vida, sendo visitada por alguns mortos importantes em sua jornada. Sua trajetória lembra o filme "Preciosa - Uma História de Esperança" (Precious, no original), do diretor Lee Daniels.

Leandra é vítima de estupros cometidos pelo pai e um namorado violento, sofre bullying e racismo na escola e pratica automutilação. "Infelizmente tem algo de mim na Leandra... Histórias da vida dela que eu vivi por ser gorda, mas a maior parte partiu da escuta de mulheres negras. É claro que eu não comparo ser gorda com ser negra em um país racista. Passei por lavagem estomacal e pratico automutilação, então todas as descrições são bem apuradas." No excelente e corajoso artigo "Túmulos Ambulantes" , escrito para a revista eletrônica QG Feminino, Maya Falks reflete sobre a automutilação: "ao contrário do que muita gente pensa — inclusive profissionais da saúde — a automutilação não é uma forma de me sentir viva enquanto desejo morrer. (...) Em minha mente, a automutilação funciona como uma amostra da morte. Células morrem, pequenos vasos morrem, é um pedaço do meu corpo que eu transformo em um pequeno túmulo ambulante."

"Histórias de minha morte" não é uma leitura leve, mas aborda, com uma linguagem acessível, temas pouquíssimos explorados no debate público brasileiro. Uma de suas cenas mais marcantes se passa na escola, quando um grupo de colegas cercam Leandra, uma jovem negra, munidos de bananas:

"Por volta da metade do caminho, meus colegas me cercaram, eu não tinha por onde fugir. Todos carregavam sacolas e, logo após eu me ver encurralada, começaram a me jogar bananas. Minha primeira reação foi ficar incrédula com o desperdício de alimento enquanto todas aquelas bananas poderiam matar a fome de outras pessoas, foi só quando eles começaram a imitar macacos e me chamar efetivamente de macaca que eu entendi por que eu estava sendo atacada (...) Permaneci sentada no chão, me encolhendo como podia enquanto as bananas me atingiam. Não é que doessem, embora eu as sentisse batendo em mim, mas doía na alma todo o peso da humilhação. Ninguém de outras séries ou que trabalhasse na escola fez absolutamente nada (...)", diz o livro.

"O bullying que aconteceu com você e que inspirou o da Leandra não foi o das bananas, né?", pergunto
"Foi esse mesmo, só que, no meu caso, eu apanhei dos colegas.", conta Maya.

Poemas para ler no front

"Perninhas cruzadas, cabeça baixa, voz baixa". A franqueza com que fala de saúde mental, gordofobia e automutilação não ofusca o tema principal da vida de Maya: sua literatura e a literatura que floresce à sua volta. A guriazinha que iniciou-se na arte da narrativa aos três anos de idade teve que esperar 31 outros anos de muitas negativas para ver seu nome estampado na capa de um livro.

Maya no lançamento do livro "Poemas para ler no Front", no bar Patuscada, em São Paulo - Divulgação - Divulgação
Maya no lançamento do livro "Poemas para ler no Front", no bar Patuscada, em São Paulo
Imagem: Divulgação

Depois disso foram cinco publicações. E a editora Macabéa já confirmou que lançará um novo romance de Maya em 2021. O maior desejo da gaúcha, hoje, é estourar a bolha dos leitores das pequenas editoras independentes do Brasil com seus personagens de grande potencial popular, criados por uma escritora que antes de mergulhar nos clássicos devorou toda coleção Vaga-Lume; além de muitos livros de detetive e romances pop. "Quando eu tinha 13 anos, mandei uma carta enorme para o Pedro Bandeira [um dos autores infantis mais conhecidos do país] sugerindo uma história que eu gostaria que ele escrevesse sobre os Karas [grupo de jovens que protagoniza muitos das aventuras de Bandeira]. Um tempo depois, recebi uma carta dele, superando minhas expectativas. Nessa carta, Bandeira me sugeria que eu me tornasse escritora."

Estou quase no fim das minhas perguntas, quando Maya conclui o papo com um pensamento que pode servir de alento para a maior parte dos românticos que se embrenham na aventura literária em um país que pouco lê e considera a literatura um artigo de luxo. Um país que não taxa milionários, mas quer taxar livros: "Sabe que anos, muitos anos, atrás, eu sonhava em ser famosa (leonina que sou) e isso só trouxe dor e nenhum sucesso. Quando eu entendi que o que me move não é o sucesso, é a escrita, a coisa mudou de direção." Como poetou a autora, em seu livro "Poemas para ler no front" (Ed. Patuá, 2019), "o corpo carneado resiste."