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Fred Di Giacomo

Breve história da literatura indígena contemporânea: pioneiros

Eliane Potiguara aos 27 anos - Instagram/Eliane Potiguara
Eliane Potiguara aos 27 anos Imagem: Instagram/Eliane Potiguara

23/07/2020 04h00

Quando a jovem Eliane Potiguara, indígena e periférica, começou a publicar poemas, crônicas e jornalismo independente, no final da década de 1970, o que viria a ser chamado de "literatura indígena" ainda não sonhava em existir - era literalmente tudo mato.

Contemporânea dos poetas marginais da "geração mimeógrafo", Eliane publicava "poemas-pôster" e cartilhas mimeografadas com suas criações artísticas desde 1979. Um ano depois, sairia o primeiro livro publicado por autores indígenas oficialmente: "Antes o mundo não existia" (Livraria Cultura Editora), de Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, membros do povo Desana.

De 1980 até 1996, o acesso dos escritores indígenas ao mercado literário foi difícil. A produção da "literatura nativa", como prefere o escritor guarani Olivio Jekupé, era viabilizada de maneira guerrilheira. Em 1996 a publicação de "Histórias de Índio" (Companhia das Letrinhas), de Daniel Munduruku, deu início a um boom do que se chamou "literatura indígena", transformada pelas grandes editoras em um nicho de livros infanto-juvenis. Foi nessas décadas que floresceu o que a escritora e acadêmica Graça Graúna chama de "literatura indígena contemporânea" (livros com autoria individual e elementos da literatura ocidental que se diferenciavam dos mitos orais da "literatura indígena clássica").

Para contar a história destes pioneiros, homenageio o clássico "Mate-me por favor" composto por entrevistas dos artistas fundadores do punk, sem intervenções do narrador. Me parece fazer sentido em uma literatura que começou oral e debate, com atenção, as questões referentes ao lugar de fala. Aqui, troquei algumas ideias com Eliane Potiguara, 70, Olivio Jekupé, 54, Aílton Krenak, 66, e Daniel Munduruku, 56. Seria interessante ter falado também com Kaka Werá, Graça Graúna, Daniel Cabixi, Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, mas essa fica para o volume dois dessa breve história.

1979 - 1984

Primeira e segunda edição o marco da literatura indígena "Antes o mundo não existia" - Reprodução - Reprodução
Primeira e segunda edição o marco da literatura indígena "Antes o mundo não existia"
Imagem: Reprodução

Olivio Jekupé: Comecei a escrever poesias em 1984, só que eu não tinha experiência e não conhecia nenhum escritor indígena com livros publicados. Mas na verdade já tinha um livro: dois indígenas Desana [Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri], da Amazônia, publicaram ["Antes o mundo não existia"], em 1980, foram os primeiros indígenas a escrever um livro.

Aí eu conheci uma escritora indígena chamada Eliane Potiguara. Ela tinha escrito alguns textos pequenos que foram publicados em cartilhas, com distribuição para amigos. Ela diz que começou em 1979.

Eliane Potiguara: Eu fui a primeira escritora indígena. [Fui criada] dentro de uma casa confinada, alfabetizada para que pudesse escrever as cartas para minha avó [indígena Potiguara], na Paraíba. Eu mandava cartas, e vinham cartas de lá, e minhas tias choravam, elas se lamentavam, elas sofriam. E eu não entendia direito aquilo, porque as cartas eram ditadas [para mim], eu tinha só sete anos, não entendia bem o sofrimento da minha família. Comecei a escrever aí.

Ailton Krenak: Foi só depois dos 20 [anos] que passei a fazer leitura fluente de textos e , sem muita compreensão das lógicas (Krenak se alfabetizou, aos 17 anos, e se formou em Artes Gráficas, pelo Senai, aos 25), mas com muito gosto pelas palavras, frases e orações. Li muitos autores brasileiros, latinos. Antes de publicar é bom ler quem já escreveu muito.

Eliane Potiguara: Consegui ir para escola normal e me formar professora, comecei a estudar o método Paulo Freire. Comecei a escrever poesias, textos, cartas e mais ou menos com 28 anos, eu escrevi o primeiro texto que é o "Ato de amor entre povos", que foi um "poema-pôster" com foto do Januário Garcia, grande fotógrafo brasileiro negro. E o artista que fazia a foto comigo era o [ator do filme "Avaeté: sementes da vingança"] Macsuara Kadiwéu. Isso começou antes de Daniel Munduruku, antes de Kaka Werá, antes de todo esse pessoal. Porque eu sou muito mais velha que eles, né? Depois de algum tempo eu criei o GRUMIN (Grupo mulher - Educação Indígena), que era um grupo que trabalhava a questão de gênero, raça, etnia, meio ambiente e o empoderamento da mulher. Aí foi criado o jornal do GRUMIN que era um tabloide de oito páginas também.

Daniel Munduruku: Tinha alguns livros já publicados, mas eram livros que não passavam do conceito da aldeia, eram usados para alfabetização. Tinha toda uma produção já, eu diria, mas eram livros que tinham mais um cunho didático.

Eliane Potiguara: O tempo que eu trabalhei na comunidade indígena, como professora e tudo, eu sofri muita perseguição política, meu nome foi colocado em uma lista de pessoas marcadas para morrer. Então eu sofri perseguições, ameaças de morte, sofri estupro, arma na cabeça, facão no pescoço. Eu não me lembro de escritores indígenas nessa época. O único que eu lembro é do Krenak que fez um jornal chamado "Jornal do Índio" (refere-se, provavelmente, ao programa da rádio USP "Programa de Índio", apresentado por Krenak a partir de 1985) e alguns livros do Kaká Werá (Kaká Werá fundou a primeira editora indígena do Brasil, em 1992, pela qual publicou "Oré Awé - Todas as vezes que dissemos adeus").

Ailton Krenak: Sou roteirista e radialista. Faço também artesanato, pintura,escultura, desenho.... Escrita não tem centralidade em minha criação.

Eliane Potiguara: A literatura que foi criada por mim foi uma literatura de resistência, um grito de guerra, de luta, naquela época, no final da década de 70, começo dos 80. Como eu não tinha recursos, criei a grande novidade dos "poemas-pôster". Isso muito antes de iniciar o movimento de literatura indígena, os Cadernos Conscientizadores, e, também, a cartilha "Terra é a mãe do índio" que foi distribuída pelo Brasil inteiro, gratuita, porque foi feita no Programa de Combate ao Racismo, no qual o Nélson Mandela participava. Eu viajava para Genebra, voltava das conferências sobre racismo, escrevia manifestos das mulheres indígenas... Mas o pessoal não considera, o pessoal que começou a fala de literatura indígena não aceita diz que começou com eles. Antes de começar esse processo "Literatura indígena", os Tikuna já tinham começado a escrever cartilhas, outras pessoas, como o Daniel Cabixi, já tinham escrito, muita gente já estava escrevendo sobre educação indígena e literatura. Porque a literatura indígena foi criada a partir da questão da educação indígena.

1984 - 1996

Texto e foto de Olivio Jekupé em 1989 - Acervo Pessoal  - Acervo Pessoal
Texto e foto de Olivio Jekupé em 1989
Imagem: Acervo Pessoal

Daniel Munduruku: Não haviam autores [indígenas] do jeito em que eu fui me tornando. Só havia um que era o Olivio [Jekupé], que eu conheci no começo dos anos 90 e tinha o Kaká Werá, que eu acho que foi o grande pioneiro de lançar livros, só que os livros dele não eram para criança. E os do Olivio também, o Olivio fazia poesia para adulto. Livro para criança mesmo não existia.

Olivio Jekupe: Era uma época em que não havia indígenas publicando com facilidade. Então, eu fui escrevendo, guardando meus textos. Depois, quando eu mudei pra São Paulo, comecei a procurar editoras aqui, só as editoras não tinham interesse nenhum em publicar autores indígenas. Aí, descobri, por acaso, uma editora chamada Scortecci. Nla, em 1985, eu publiquei em uma antologia junto com outros escritores do Brasil. Em 1993, lancei um livro de poesias chamado "Leópolis Inesquecível" e, em 1999, publiquei "500 anos de angústia", independente, que eu mesmo paguei e fui divulgando de boca em boca, vendendo para as pessoas que vinham aqui na aldeia, né?

Eliane Potiguara: Depois de muito tempo, eu conheci o Daniel Munduruku e soube que ele tinha alguns livros que eram contos (mitos do povo munduruku) que ele recontava.

Daniel Munduruku: Eu não tinha muita intenção de escrever esse livro ("Histórias de Índio"), de publicar. Eu tinha começado a contar histórias (mitos tradicionais) para crianças em escolas e as crianças sempre muito curiosas para saber as coisas. Sempre me faziam as perguntas mais cabeludas possíveis, né? Uma vez uma menina me perguntou onde ela encontrava aquelas histórias para ler. E aquela pergunta me pegou de surpresa porque, até então, eu respondia coisas tipo "Índio casa?", "O índio anda pelado?", "Onde é que o índio faz cocô?" Essas coisas que as crianças sempre querem saber. E aquela pergunta, que aquela menina me fez, eu não sabia responder, não tinha conhecimento se as histórias e os mitos que eu contava já haviam sido publicadas ou não. Isso foi mais ou menos em 1993, 1994.

Aquilo lá pra mim acendeu uma luzinha na minha cabeça: "Se essas histórias não estão contadas, por que não escrevê-las?" Então eu fiz essa história ("O menino que não sabia sonhar"), e mandei para umas seis editoras. Naquela época, era via Correios e as editoras tinham seis meses para dar uma resposta. Alguns meses depois, cinco delas me responderam dizendo: "você escreve muito mal". (Risos). Mas uma delas, a Companhia das Letrinhas, me disse "Você escreve mal, mas a história é boa". Fui conversar e quem estava iniciando a Companhia das Letrinhas, no início dos anos 90, era justamente a grandiosa Lilia Schwarcz. E a Lilia era minha professora na USP, onde eu fazia o mestrado em antropologia. Eu mostrei para ela o texto, a Lilia gostou e disse para eu mandar lá. Ela colocou uma outra escritora mais tarimbada, a Heloísa Prieto, para me ajudar e fazer alguns apontamentos na minha obra. E Heloísa foi me dando umas dicas narrativas, porque meu jeito de escrever era muito ligado à oralidade.

Olivio Jekupé: Quando eu estava no meu terceiro ou quarto livro independente, por sorte a Secretaria da Educação de São Paulo, na época com a prefeita Marta [Suplicy], conheceu meu trabalho, aqui na aldeia, e falaram assim "Ó, nós vamos comprar seus livros para distribuir nas escolas". Aí meu livro independente passou para uma editora e eu comecei a ter mais sucesso, né?

Daniel Munduruku: Depois eu fui arrastando todos eles comigo, né? O Olivio publicou livro pra criança, o Kaká publicou livro pra criança... Fui criando uma horda de escritores de livros para criança, que eu achava que era mais interessante, como educador (Daniel trabalhou muitos anos como professor). E que poderiam render mais dividendos para os autores. Porque o autor de livros infantis consegue viver de literatura, coisa que o autor de livros adultos não consegue.

1996 - 2004

O líder indígena Ailton Krenak - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Ailton Krenak
Imagem: Acervo Pessoal

Eliane Potiguara: Agradeço ao Daniel Munduruku por ter me dado apoio e ter abrido espaço na Global Editora para lançar meu livro "Metade cara, metade máscara" (2004), que é um livro totem, como diz Aílton Krenak, é um livro que dizem que você deveria ter na sua mesa de cabeceira.

Ailton Krenak: Meu primeiro livro autoral ("Como um rio como pássaro") é de 1998; foi publicado no Japão pela editora Tokuma de Tóquio. Ele está sendo traduzido para português e será publicado este ano no Brasil. Também [teve] "O Lugar Onde a Terra Descansa" (publicado em 2000 e fora de catálogo. Esse título compartilha com o restante da obra de Krenak o fato de partir da oralidade, pois é baseado em entrevistas e falas do pensador indígena).

Olivio Jekupé: A partir dos anos 2000, começaram a surgir mais escritores indígenas com livros publicados, com mais facilidade para publicar, principalmente os índios urbanos. Isso é muito bom, é importante esses livros chegarem nas escolas para as pessoas conhecerem a literatura nativa. E a criança indígena sempre aprendeu a história oral. Então, essa criança que tem esse talento de contar histórias é um verdadeiro escritor.